sábado, 5 de maio de 2007

o monólogo interior e o solilóquio

O MONÓLOGO INTERIOR E O SOLILÓQUIO -----------------—————————————— Introdução--------------------------------------[•] É provável, que em algum dia, você tenha feito as perguntas: Porque existo? Quem eu sou? O que quero da vida? Para onde vou? Diante desses questionamentos, a conversa consigo mesmo flui e você mergulha no seu mundo interior, registrando as divagações a respeito de você, das coisas e das pessoas ao seu redor. E nesse mundo submerso que se encontra, adquire consciência do universo em que vive. Assim faz a personagem quando conversa com ela própria, registrando suas emoções, impressões ideologias, enfim, sua verdade interior diante do mundo que lhe é apresentada. A isto damos o nome de monólogo interior. O Monólogo Interior -----------------------------------------------------[•] O monólogo interior é uma técnica literária que trata de reproduzir os mecanismos do pensamento no texto. Caracteriza-se por transcorrer na mente da personagem, como se o “eu” falasse a si próprio. Daí considerar-se o monólogo interior, um diálogo; visto que subentende a presença de um interlocutor, “o tu” (com quem se fala), ou seja, “o outro”. Já por aí se vê, portanto, que teremos uma personagem desdobrada em duas entidades mentais: “o eu e o tu”, ou “o eu e o outro”, que trocam idéias ou impressões, confrontam-se, discutem e tentam se entender como pessoas diferentes. Se há um “eu” na fala da personagem, tem de haver também um “tu”, e esse diálogo pode ocorrer com ela mesma: “Como foi mesquinha a minha conduta!” Exclamou ela, “eu que me orgulhava tanto do meu discernimento, da minha habilidade! Eu que tantas vezes desdenhei a generosa candura de minha irmã [...]. Como é humilhante esta descoberta! Mas como é justa esta humilha- ção! [...]. Mas a vaidade, não o amor, foi a minha loucura! (...). Até este momento eu não conhecia a minha própria natureza”. (Orgulho e Preconceito – Jane Austen) Podemos observar, neste fragmento de Orgulho e Preconceito, que a personagem defronta-se com suas próprias falhas, admite que errou e que merece a humilhação pela qual está passando. Falando com a outra que existe dentro dela, caracterizando assim, o monólogo interior, assume não ter conhecido sua própria natureza e fragilidades. A personagem exprime o seu pensamento mais íntimo, mais próximo do inconsciente, anterior a qualquer verbalização deliberada ou organização lógica, por esse motivo, o monólogo interior, apresenta-se algo desordenado ou até mesmo caótico. É claro que o ato de redigir coloca relativa ordem ao caos, mas tudo se passa como todo o conteúdo subconsciente vazasse inteiro no papel com a desordem que lhe é peculiar. No monólogo interior os escritores tratam de expressar sentimentos ocultos ou desejos reprimidos que não podem expressar com palavras ou ações. São "mundos diferentes no interior das personagens", em que, na maioria das vezes, ocultam fantasias e pensamentos que nunca puderam ser realizados. Em seus escritos (os escritores) refletem seu mundo ideal e seus desejos (ações realizadas ou frustradas). Isso permitiu a vários escritores, durante o modernismo, explorar os diferentes mundos que constituiam o interior de si mesmos, seus desejos e ideais. De dois modos pode apresentar-se o monólogo interior: a) Diretamente, isto é, sem a intervenção do escritor, de maneira, que a personagem expõe o conteúdo subterrâneo de sua mente, numa espécie de confidência ao leitor, sem barreiras de qualquer ordem e sem obediência à normalidade gramatical. Ausência de qualquer marca manifestando a intervenção do autor: introduções, ou intercalações («pensava ele», «dizia-se») e mesmo «aspas». Uso do presente (do pensamento) como tempo dominante. As últimas quarenta e cinco páginas do "Ulisses", de James Joyce, têm sido consideradas o exemplo mais acabado e perfeito do monólogo interior direto; principalmente, na citada fala de Molly Bloom, que atinge o auge por ter sido suprimida toda a pontuação, e se desenrolar sem quaisquer interrupções até ao final do romance. A pontuação marcaria uma interrupção – uma respiração - logo, seria ainda uma intervenção do autor. Em "Perto do Coração Selvagem", de Clarice Lispector, encontram-se dois monólogos interiores diretos, entre as páginas 58 e 63 e 175-179. Do primeiro destaco um trecho: “A cama desaparece aos poucos, as paredes do aposento se afastam, tombam vencidas. E eu estou no mundo solta e fina como uma corça na planície. Levanto-me suave como um sopro, ergo minha cabeça de flor e sonolenta, os pés leves, atravesso campos além da terra, do mundo, do tempo, de Deus. Mergulho e depois emerjo, como de nu- vens, das terras ainda não possíveis, ah ainda não possíveis. Daque- las que eu ainda não soube imaginar, mas que brotarão. Ando, des- lizo, continuo, continuo... Sempre sem parar, distraindo minha sede cansada de pousar num fim. — Onde foi que eu vi uma lua alta no céu, branca e silenciosa? As roupas lívidas flutuando ao vento. O mastro sem bandeira, erecto e mudo fincado no espaço... Tudo à espera da meia-noite... — Estou me enganando preciso voltar. Não sinto loucura no desejo de morder estrelas, mas ainda existe a terra. E porque a primeira verdade está naterra e no corpo. Se o brilho das estrelas dói em mim, se é possível essa comunicação distante, é que alguma coisa quase semelhante e uma estrela tremula dentro de mim." ●» Observa-se nesse fragmento: 1 – o emprego da primeira pessoa e a não interferência do escritor. 2 – a comunicação direta, mas que pressupõe ausência de um interlocutor, como se de repente a personagem impusesse a sua presença por contra própria, afastando o romancista de vez e reduzindo-o a condição de um espectador mudo. b) Indiretamente, isto é, com a intervenção patente do ficcionista na transcrição do fluxo mental da personagem, que comenta, discute e explica (em terceira pessoa do singular), como se este detivesse o privilégio de sondar-lhe e captar-lhe o tumultuado mundo psíquico sem deformá-lo, pelo menos aparentemente. Tudo se passa como se a personagem não conseguisse exprimir seu tumultuado mundo psíquico. Forma-se, no monólogo interior indireto, o triângulo escritor-protagonista-leitor, ao passo que no direto o primeiro desaparece completamente. Porém as características do monólogo interior indireto tornam-no mais fácil e, por isso, é usado mais frequentemente. Em "Mrs. Dalloway ", Virginia Woolf utiliza o monólogo interior indireto com muitos de seus personagens. Aliás, todos os seus romances contêm exelentes exemplos de monólogo interior indireto; às vezes mesclado com outro discurso, às vezes isolado. Em Perto do Coração Selvagem também encontramos alguns exemplos: “De manhã. Onde estivera alguma vez, em que terra estranha e mila- grosa já pousara para agora sentir-lhe o perfume? Folhas secas sobre a terra úmida. O coração apertou-se-lhe devagar, abriu-se, ela não respirou um momento esperando... Era de manhã, sabia que era de manhã... recuando como pela mão frágil de uma criança, ouviu abafado como em sonho, galinhas arranhando a terra. Uma terra quente, seca... o relógio batendo tin-dlen... tin-dlen... o sol chovendo em pequenas rosas amarelas e vermelha sobre as casas. Deus, o que era aquilo senão ela mesma? Mas quando? Não, sempre...” ●» Percebe-se, no fragmento, o emprego da terceira pessoa e a nítida presença da autora. ●» A protagonista parece se despersonalizar-se e referir-se a si própria como uma estranha, e a romancista acompanha-lhe os movimentos. ●» Percebe-se também que a interferência é apenas periférica, ficam intocados os impulsos desconexos que habitam a psique da personagem. O Solilóquio--------------------------------------- ●» Vocábulo de origem latina "Soliloquiu(m)", cujo significado é [loqui] falar [solus] sozinho. Na literatura esse termo foi cunhado por Santo Agostinho no seu "Líber Soliloquium". ●» Pode ocorrer tanto no teatro como no romance. O solilóquio presume que a personagem, sozinha em face do auditório e do leitor como se estivesse inteiramente desacompanhada de qualquer outra, articule seus pensamentos em alto e bom som. ●» O solilóquio consiste na oralização do que se passa na consciência do protagonista. Aí está a diferença do monólogo interior. Neste a oralização se passa no subconsciente do protagonista, de modo que suas emoções e idéias são estruturadas de forma ilógica e incoerente; já o solilóquio, por se passar no consciente da personagem, suas idéias e emoções são estruturadas de maneira coerente e lógica, ainda que partindo de um pensamento psicológico e não-racional. ●» Considera-se inexistente, no solilóquio, a intervenção do escritor; a personagem se comunica diretamente com o leitor. Daí ser empregado nas circunstâncias em que o escritor deseje que a personagem expresse com meios próprios o que lhe vai à consciência. ●» O solilóquio é feito sempre na primeira pessoa e dirige-se ao leitor como se a personagem dialogasse com uma interlocutora calada, com uma diferença: no sililóquio é possível dizer tudo o que se passa pela mente, enquanto o diálogo não permite visto ser uma relação. ●» Nos séculos XVI e XVII foi usado regularmente, como se observa, por exemplo, na obra de Shekespeare, "Hamlet", que apresenta o conhecido solilóquio “To be or not to be”, ou de Gil Vicente, cuja Farsa de Inês Pereira (representação 1523) começa com um solilóquio da heroína, do qual destaco as primeiras linhas: Ó Jesus! Que enfadamento, e que raiva, e que tormento, que cegueira, e que canseira! Eu hei de buscar maneira d’algum outro aviamento Mais uma vez recorro a Clarice Lispector, em o "Coração Selvagem", para exemplificar, com este trecho, o solilóquio no romance: “Eu estava sentada na catedral, numa espera distraída e vaga. Respi- rava opressa o perfume roxo e frio das imagens. E, subitamente, antes que pudesse compreender o que se passava, como um cataclismo, o órgão invisível desabrochou em sons cheios, trêmulos e puros. Sem melodia, quase sem música, quase apenas vibração. As paredes com- pridas e altas abóbadas da igreja, recebiam as notas e devolviam-nas sonoras, nuas e intensas. Elas transpassavam-me, entrecruzavam-se dentro de mim, enchiam meus nervos de estremecimentos, meu cére- bro de sons. Eu não pensava pensamentos, porém música.” Notou a confidência, numa narrativa consistente, coerente, lógica, que a personagem faz a você? O mesmo pode-se dizer da descrição. Pois é esta a característica que diferencia o solilóquio do monólogo interior. No teatro, sobretudo entre o século XVI e meados do XIX, empregava-se um truque aparentado ao solilóquio: o aparte. Consiste no recurso de a personagem manifestar os seus pensamentos de tal forma que só se tornem audíveis a platéia e não pelas demais figuras em cena, transformando, assim, a platéia em verdadeiro confidente.® ___________________________________________________________Informações recolhidas e adaptadas de: José de Nicola, Floriana Toscano e Ernani Terra - Língua, Literatura e Produção de Textos. Rocha Lima, Gramática Normativa da Língua Portuguesa. Massaud Moisés, A Criação Literária. Branca Granatic, Técnicas de Redação. ● Se você encontrar erros (inclusive de português), por favor, me informe. ● Agradeço a leitura do texto e, antecipadamente, quaisquer comentários.
Ricardo Sérgio
Publicado no Recanto das Letras em 08/03/2007

Um comentário:

Adriano de Faria disse...

Obrigado pela contribuição!