sábado, 5 de maio de 2007

Conjeturas antipoéticas - Fred teixeira

Conjeturas antipoéticas


I – O esquema da MáquinaO café sai da boca da garrafa térmica feito urina quente dalguma vagina. O cigarro fumega no cinzeiro enquanto leio Fernando Pessoa, “mais vale é o mais valer, que o resto urtigas o cobrem”, o quê isto quer dizer? Não sei, não quero saber. A Poesia é irracional, é preciso ser um animal para compreende-la, e não sou mais um animal, não sou mais um animal humano, não tenho ânimo, não tenho alma. Eles, eles foram que me converteram, me tiraram o espírito nalguma revisão, sorrateiramente, nem percebi. Quando precisei foi que fui ver que havia sido burlado, que o checkup fora um pretexto para me roubar aquele item translúcido, que poucos acreditam possuir. E têm razão, pois o negócio pode ter sido extirpado, eles sabem como, eles sabem tudo, aqueles desgraçados da Liga. Não me perguntem nada, eu não sei que Liga, mas deve ser uma Liga, só mesmo uma Liga teria esse poder. O poder de subtrair almas. É um poder maldito, podem acreditar, um poder que eles usam por algum motivo, e acho que o motivo é trucidar o gênero humano de uma forma bem esquisita: fazendo secar de dentro pra fora, feito uma semente no interior de um microondas ligado. A propósito, tudo que evapora pode ser chamado espírito, e é justamente o que está ocorrendo, o liqueur está evaporando e sublimando e precipitando noutro lugar, longe, bem longe daqui. Mas aonde? No Triângulo das Bermudas? Na cabana do Pai Tomás? Na Cochinchina? Não. Precipita no próprio presente, perdendo-se nas engrenagens do Tempo, engraxando-as, besuntando-as de sangue e muco. A Máquina não pode parar. Nós podemos parar. A Máquina não. A Máquina é eterna. Nós não. Tem gente que diz que a Máquina somos nós, que sem nós ela não existiria. Mas eu particularmente prefiro acreditar que, sem nós, ela apenas parava de funcionar e estragar seus arredores.II – A folha não é mais puraEu tinha de provar pra mim mesmo que era uma folha de papel em branco. Parti do pressuposto de que eu era pálido, pautado nos cabelos sobre o miolabirinto. “História da Civilização Ocidental”, diz Pinóquio com “A Hora da Estrela” da Lispector nas singelas mãos de madeira. Havia café ali, em algum lugar, e então caminhei, caminhei e nada. Mas foi, e o Clark Kent, e lá foi ele, feito um camburão. Seqüelas não têm remédio. No ato, peripécias de Peri, o malabarista índio: cigarro aceso entre dois dedos gigantescos... abismos, dedais sirianos, uma bolsa de canguru no prego, céus, o galo cantou; a lua no céu estagnada tela oleosa soprada bafejada porejada ali? Dá quase pra pegar... como um livro? Um sarro? Um sarrinho, hehehe... um sarrinho com o Cara, se é que você me entende... aquele, o Todo-alguém... você sabe, Celso Caipirinha... um bardo no agito dos frascos, compreende, pra acabar... e nos degraus dos cânticos havia uma coral, aquela cobra lá no degrau mofado da igreja velha, seu. Foi lá que eu saquei que essa história daí, ô, essa história daí que eles conta, em noite de lua e galo cantando a noite inteira pensando que a lua, ô, é o sol, saquei que era só pra me fazer ficar pensando, pensando... e foi nessa que eu entrei bem direito nos anelos, cara, naqueles anelos loucos que giravam como carrosséis malucos, liderados por outras fontes que não as mecânicas – credo, tudo é máquina, tudo enferruja e solta tinta e rebrilha na escuridão, escapamento fumegando no porão. Havia gasolina lá, gasolina antiga. Tossiu nuvens carregadas de bronquite, reciclando gás e árvore, e as folhas do outono dispersas no inverno amamentarão a primavera em pleno verão; frio é só agora, agora que a folha não é mais pura e o cigarro apagou – mas tornei a acender o tal.III – Hábitos estranhosÀs vezes penso que o hábito de fazer exercícios físicos talvez venha a me matar – costumo forçar nas contrações –, mas que isso não seria inteiramente lastimável. Afinal, se não posso usar minha carcaça para o que sei que estou destinado, é legítimo que ao menos eu morra tentando. Às vezes sinto tremer os membros – e é como se minha alma tremesse junto. Acendo um cigarro, fatal companheiro, e trago para dentro de mim toda decepção quanto ao fracasso do mundo.Escuto a hora de jazz de uma rádio cultural qualquer. É o hábito. Depois vem a música erudita, cuja sonoridade por vezes é enfadonha. O jazz, mesmo quando enfadonho, não enfada de todo. Já alguns velhos clássicos (Wagner? Schubert? Lizst?) quase matam de torpor. Mas mantenho a sintonia: é bem melhor que música contemporânea.Solto os cabelos, que estou deixando crescer. Algo a ver com Sansão e os filisteus. Nos dias de Tróia fui Ajax, o nervosão. Era assim que eu era chamado. Mas foi há muito tempo, tanto tempo que nem me lembro. Ai, ai... é o hábito.A velha cadela late em meus ouvidos. Meus ouvidos estão estranhos, como se estivessem varados, como se dentro de minha cabeça houvesse um verme carcomendo as laterais internas do meu crânio. É o hábito, habitar uma larva aninhada entre os miolos e então de dentro brotar feito saprófita orquídea sôfrega dentre os olhos e faiscar, como um sinaleiro, a putrefata realidade interior. No fundo do ser consciente há um ser inconsciente que não pode, que não aceita aceitar o fim. A tal princípio denominam alma entre os metafísicos. Já eu, entretanto, prefiro enxerga-lo como o que realmente aparenta ser... sou um sujeito de hábitos estranhos.IV – Apêndice algo sinceroNa Poesia o poeta deve entregar-se como está, nunca como é. O que quero dizer é que o poeta não tem responsabilidade sobre o que aparenta ser; sua única obrigação é expressar o que está sentindo naquele exato momento/passado. Uma vez escrito, um poema deixa de representar uma realidade passageira, passando a ser o registro de uma sensação congelada, de um pensamento fixo, que tem o potencial de enternecer corações e influenciar mentes. Mas nada do que possa vir a ocorrer em conseqüência de uma má interpretação, ou mesmo de uma interpretação literal – mas arbitrária – do texto – em face do desenvolvimento atual da linguagem, que prima pela degeneração dos termos e seus significados – poderá ser creditado unicamente à mente que o concebeu. É necessário fazer notar que o poeta, longe de tentar reformar o mundo – como um filósofo – deve unicamente procurar desfigura-lo – ou antes, retirar de seu dorso a capa ilusória que as instituições tendem a cerzir com suas normas hipócritas, revelando seu aspecto grotesco – e real.14/07/06
Fred Teixeira
Publicado no Recanto das Letras em 28/10/2006Código do texto: T275466

Nenhum comentário: